05 abril, 2007

um cheirinho... Que saudades da Vô Zita


Ao tentar adormecer ao som dos tiros ela meditava, e pensava que tinha passado mais um dia. Mais um dia com o constrangimento de regressar a casa e nunca saber se iria encontrar todos vivos e de saúde, e saber que cada encontro, cada olhar, cada beijo poderia ser o ultimo.
Ter que deitar-se com a angustia da guerra continuar pelo amanhecer, e a esperança da guerra acabar, tornava a sua cama cada vez mais pequena.
Por vezes a avô Zita aproximava-se lentamente, sempre denunciada pela sua enorme sombra na parede, tremida apenas pelas inconstâncias da chama da vela, e por aquele som característico de arrastar chinelos, sentava-se à beira do colchão, com as suas mãos duras e rugosas acariciava-lhe a cabeça, e como despedida dava-lhe um beijo na testa dizendo, Dorme bem minha filha. Ao fazer isto, a avô levava consigo a angustia, e a cama ficava mais confortável, mais espaçosa.
De seguida, Belita fechava os olhos e voltava a ouvir os toques dos chinelos, agora a afastarem-se, como uma musica e dança que estão terminando, o som baixando de volume a medida que dançarinos saem de palco. Ouvia agora o bater da porta. Vozita era a chefe da família, e a única que recusava-se peremptoriamente a dormir na casa dos vizinhos, só por oferecer mais segurança.
Dizia, Se tiver que morrer nesta guerra, vai ser na minha casa, então, todas as noites ela regressava sozinha ao seu palácio, sentava o seu enorme corpo no velho cadeirão, acendia o seu cigarro naquele silêncio e escuridão, onde só se via a luz vermelha do cigarro entre os dedos mulatos e grossos com unhas pintadas num vermelho vivo, como o seu sangue.
As lágrimas vertiam timidamente pelos olhos de Belita, cada vez que a Vozita saía sozinha de noite, pensava que podia ser a ultima vez que a tinha visto, mas Belita encorajava-se sempre quando pensava muito na avô, era como se fosse um imponente imbundeiro bem enraizado nesta terra, que teimava em ficar, quando todos fugiam. Teimava em viver a sua vida calmamente dentro daquela incompressível normalidade.
Lembrava-se agora do ritual de refugiarem-se nos bunkers improvisados em alguns quintais dos vizinhos, de passar pela avô naquele largo junto à casa, e vê-la sozinha, curvada com aquele rabo enorme para cima, e cabeça coberta com o lenço para baixo, arrancando vigorosamente à mão o impertinente capim, cuidando assim das suas culturas de abóbora, enquanto aqueles impertinentes camaradas do MPLA, passavam lá em cima nos seus mig´s, bombardeando indiscriminadamente a cidade, semeando a dor e destruição... diferentes culturas, pensava Belita, oxalá a avô arrancasse também desta terra aqueles impertinentes camaradas, aqueles e os da UNITA. Agora, depois de encorajada, mas ainda com resíduos das lágrimas, Belita sorria, estava a lembrar-se dos soldados da UNITA prenderem a Vozita.
Ò mãezinha já viu o que está a fazer? Tem a bandeira com a cabeça do mais velho (Savimbi) voltada para baixo!?!? Vamos ter que a prender.
Num bairro controlado pela UNITA, era a única família que preferia o MPLA, talvez também por serem todas mulatas e terem sofrido algumas perseguições da UNITA por não serem negras, valeu-lhes sempre terem uma familiar casada com um importante membro da UNITA, que fez com que tivessem escapado a muitas perseguições, e neste caso, valeu a libertação da Vozita.
A Vozita jurou ate aos seus últimos dias, que estava distraída quando içou a bandeira, mas dizia-o sempre rindo às gargalhadas e abanando a cabeça.

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