03 dezembro, 2007

As cores do Outono

num fim de semana de outono...
Carruagem 21, lugar 86 do comboio Intercidades
Viagem: entroncamento - covilhã
Proximidades de Belver

Levo o jornal, um livro, leitor mp3.
A leitura do jornal torna-se interessante, o livro que vai na mala é uma porta para outros mundos, e o leitor mp3 que vai no bolso é um veiculo que me pode levar a outras viagens.
Faço um esforço para manter os olhos concentrados nas letras e imagens do jornal, mas é inevitável, a paisagem é demasiado bonita para ser ignorada.
Dois anos no alto Alentejo permitiram-me conhecer alguns locais como a praia do Alamal, Belver, e as portas de Rodão, entre outros menos conhecidos, mas agora dentro desta lagarta de ferro que vai serpenteando as margens do rio, ora na margem esquerda, ora na margem direita, os meus olhos ficam pasmados com a beleza que encontram em cada recanto inexplorado, vejo pequenas albufeiras que entram pelos vincos ou dobras dos montes em mescla de verde e cinza, que vistos ao longe parecem mantos, lençóis estendido a beira do rio.
Algumas dessas albufeiras têm pequenas ilhas, povoadas de freixos, choupos e amieiros que tentam passar despercebidos na sombra, mas as suas cores outonais são denunciadas pela luz cintilante e intermitente que é reflectida pelas águas deste rio.
Nisto passa por mim uma criança que é maquinista de um outro tipo de composição, atrás dela a mãe que por sua vez dá a mão ao ultimo vagão humano, que aparenta ser tia da pequena e jovem locomotiva. O ultimo vagão desta composição humana, é invisual ou cega, como preferirem, no fundo em linguagem de criança, não consegue ver. Não consegue ver tudo aquilo que eu estava aqui há pouco a relatar, e as tantas dou por mim a olhar pela janela do comboio espreitando a tal paisagem e pensar nessa sensação.
Passados uns segundos, entramos todos num túnel e tudo ficou escuro, e eu sorri...

02 novembro, 2007

Imensidão-memórias de um nómada

...de brisa passa a vento, que agora sopra estalando, esticando velas e cordas, encurvando esteiras e testas, e neste silêncio aflito apenas se ouve o ranger de cordas e madeiras.
O mastro que era apenas um pau, limitado a gerar sombra em dias soalheiros e pouco mais, range agora de alegria, voltou a ser o mastro imponente que agora faz jus a seu nome.


Olho em redor e vejo risos e olhares cúmplices, que se tocam e abraçam, brindando alegria, olhos vivos de quem aprendeu a ter esperança até à ultima gota de vida.
Olhos de quem aprendeu a empilhar o medo, para trepar nele e subir mais alto.
olhos que mostram a grandeza de um ser humano, que se agiganta perante imensidão do mar.
Vou sorrindo também, e agora no horizonte quase que consigo medir este mar.
Escondido na imensidão sei que reside o medo, porque o medo nasce naquilo que é imprevisível, naquilo que não controlamos.

Como na vida, o mar traz tempestades que nos levam quase sempre qualquer coisa, no fundo temos o medo de perder. Aprendemos todos juntos a lidar com este medo.
Por isso, seja qual for o preço a pagar, atravessamos imensidões, e vencemos sempre as tempestades, porque antes de chegarmos, já lá estamos.

No fundo, Vencemos porque apenas quisemos vencer.


09 outubro, 2007

Fome de vida

tenho fome, senhores.
quero comer esse ódio e raiva,
para que nao reste nada,
nem sequer uma migalha.


tenho sede, senhores,
deixai-me beber um pouco dessas cores
para que esta digestão,
afinal, não seja brava.

23 setembro, 2007

O sopro do Outono

Numa forte rajada de vento
Ela desprendeu-se
Como uma castanha que se solta do ouriço

Na falta da carne e ossos eles abraçam o vento
Contam-lhe os segredos, ele parte
voando sobre os soutos, soltando palavras nos Castanhos.

19 setembro, 2007

Por esse rio acima...

Albufeira da Barragem da Valeira - São joão da pesqueira
Sábado, 17 de Setembro de 2007
08h30


Estou no meio, entre as 2 margens. A norte a margem brava, natural, onde arvores e arbustos fizeram por merecer o seu espaço, entre enormes e numerosos blocos de granito. A Sul, a margem amansada, trabalhada por homens, onde vinhas, amendoeiras e oliveiras foram plantadas em escarpas onde o homem desafiou as forças de atrito, conhecendo e explorando alguns limites da física através de empirismos.Olhando de baixo para cima, aqui tão perto, sinto-me pequeno. Pequenez exercida pela imponência destas 2 margens. Lentamente, por este rio acima… recordo a musica do Fausto, e ainda na sombra das margens reparo num maciço rochoso a inscrição de umas frases num português medieval. Aproximo-me e leio que no sec. VIII, por ordem de D.Maria, naquele local foi demolido o grande Cachão da Valeira. O maior e mais temido obstáculo na navegação do rio douro. Sendo assim possível a navegação em todo o douro em território nacional, fazendo com que implantassem mais instalações vitivinícolas nesta região alargando assim a região do douro vinhateiro, porque afinal o vinho… o do Porto só tem mesmo o nome, os túneis e barris cheios do precioso liquido, eram transportados rio abaixo até à cidade invicta.

Os outros barcos, os grandes... esses passam numa correria rio acima, rio abaixo.

23 agosto, 2007

Voadores

Ontem tive o privilégio de ver Ola Kala no Centro Cultural de Belem.
É um espectaculo dos franceses Les Arts Sauts, que apresentam entre outras coisas, a mágica elegância de movimentos aéreos numa perfeita simbiose entre os trapezistas e a pequena orquesta (de cordas) acompanhados por uma vocalista de voz divinal.
Aconselho vivamente.
está no CCB até 26Agosto.

15 agosto, 2007

Sentimentos já vividos e escritos

Musa Impontual

Agora que passou a inquietação
E sei que não vens,
Que aliviada solidão eu sinto!
Como um cadáver que se libertou
Das penas de viver,

Tenho nas veias um sossego frio.
É um repouso de pedra
Sem qualquer inscrição perturbadora.
Calma de hibernação
Nos ossos, no instinto e na razão,
E na própria vontade criadora.


Miguel Torga

Em Terras de Rohan

Repouso


Em tuas mãos repousei
De silvas, afiadas e frias,
Depois senti-as
Como searas quentes afagadas pelo vento,
Semeadas em terras queimadas de sofrimento.
.
.


25 julho, 2007

Sentimento sem nome

Metáfora da Despedida
.
.
Estranho é este sentimento
de ganhar, perdendo.
Feroz é a ansia de ser muita, e o tempo pouco,
E eu semeio esta amizade como um louco.

De ti espero um sorriso, onde quer que estejas
para remendar o vazio,
de não ter-te aqui rente a mim.

23 julho, 2007

Pequenos paraísos submersos

Este post vai pecar por falta de umas boas fotos, mas ainda assim vou tentar.

Este fim de semana estive de molho, ou seja, no sábado tive mergulho em cascais, e domingo em sesimbra.
Bom, vou só falar de Sesimbra.
Longe de ser um mar vermelho, Sesimbra vai sendo um bom destino nacional para as actividades subaquaticas, não tão bom como Porto Santo ou Açores, por ter menos visibilidade e temperaturas mais fresquinhas, mas não deixa de ser um local atractivo.
A proibição de pesca e caça submarina nestas bandas vai dando os seus resultados.
Eu o Jorge e o Vasco fomos dar um belo passeio subaquatico no Jardim das Gorgónias. Mergulhar por si só já é algo fantástico, com amigos torna-se ainda melhor porque estamos a partilhar, e partilhar é muito bom.

Quando me perguntaram os motivos de ter feito o curso e querer mergulhar, respondi a reinar que era por causa do filme à procura de Nemo, mas aqui estão os verdadeiros motivos
- explorar o desconhecido
- sentir a água a envolver-nos no silêncio transmite muita calma. Talvez por voltarmos às condições iniciais da nossa vida.
- sentir o corpo a flutuar é mágico, eu na minha frustração de não conseguir voar, lá em baixo é onde me sinto próximo dessa sensação
- ter a máxima liberdade de movimentos
- observar de qualquer ponto a fauna e flora existentes
- brincar com bichos curiosos e engraçados como os polvos

O Jardim das Gordónias, é mesmo um jardim. Quanto à flora, as formas e cores são variadas e vão desde os amarelos aos roxos, em relação à fauna, pode ver-se muitos polvos, linguados, cavalos marinhos, sargos, abrótias, douradas, safios, moreias, e mais que não conheço por enquanto. Embora a água estivesse a uns 14ºC, foram 40minutos muito bem passados.

19 julho, 2007

Blog aberto a comentários

Após vários pedidos, serve o presente post para informar que doravante são permitidos comentários. Mas atenção... a censura será severa. eheh

22 junho, 2007

Simbolismos

Huambo, 14 de Junho de 2007 - 14h30
O sinal de estacionamento proibido representa a proibição imposta por mim, em estacionar numa certa empresa. Entretanto como não é um sinal pacífico, acabou por levar um tiro.



Huambo, 18 de Junho de 2007 - 08h00
Consequências... O Preto e Branco do Aeroporto do Huambo representa o passado recente.
Muitos de vocês já sabem. Voltei a Portugal, mas continuarei a actualizar o blog.
O Adeus em 18-06-2007
Obrigado José Lino, Emanuel Teixeira e Lisboa Correia pelo respeito, a amizade e lealdade demonstradas.
Muito Obrigado suplementar ao Senhor Lisboa Correia pelo Abraço comovido.

16 junho, 2007

Os meninos do Huambo gostam de estudar

Cerca das 18h00, quando o sol já se escondia, aconteceu o indesejável, um corte de energia da rede. Procedimento normal, dirigir-me ao gerador que fica na varanda das traseiras do apartamento.

Após ligar o gerador, reparei nos meus vizinhos que estavam lá fora a estudar

Como não têm a sorte de ter um gerador e como estavam a estudar dentro de casa, à falta de energia electrica vieram acabar de estudar para o terraço, aproveitando a pouquíssima luz natural que restava, que os olhos mal captavam, mas já a máquina fotográfica...




11 junho, 2007

Águas do Hemisfério Sul





Posted by Picasa
Para os mais entusiastas... ficam as desculpas pelo atraso da publicação deste post

6ª feira - Luana, 25 de Maio de 2007
Hoje é feriado, dia de Africa.
Aproveitei para ficar mais um dia em Luanda porque o programa era atractivo... Ida à praia, com boa companhia.
Bom, podia começar por descrever detalhadamente a viagem até à praia, mas não tem muito interesse a não ser o facto de termos saído de casa pelas 8h00, e chegarmos à praia cerca das 11h00. Por necessidade, desta vez, fomos por estradas secundárias, entenda-se... picadas. Foi diferente.
A determinada altura, uma pequena pausa na viagem, o meu regresso ao miradouro da lua, que é fácil de identificar nas fotos. Este local é quase paragem obrigatória, para quem vai de Luanda para sul pelo litoral e quer atravessar o rio kwanza, vale sempre a pena.
Depois de tirar umas fotos, e de “soltar” as pernas regressamos à estrada.
Antes de passar na ponte sobre o rio kwanza, a obrigatória paragem na portagem, onde vão passeando descontraidamente cabras e bodes... quadrúpedes claro, como podem constatar na foto em que ilustra um belíssimo exemplar da espécie.
Passada a portagem e ponte, temos mais umas dezenas de kms pela frente até à praia. Não sei o nome da praia, apenas que fica depois da minha já conhecida praia de Sangano, e um pouco depois de Cabo Ledo.
O dia, ainda está um pouco cinzento, mas pouco interessa, está calor, e aqui a cor do céu não tem relação parental com a temperatura.
Estamos a chegar, e ao entrarmos na picada vamos vendo lá em baixo, a praia, e à sua volta uma bonita paisagem, um pouco mais a frente tivemos que parar para tirar umas fotos, mas acreditem que aquela beleza não conseguiria ser copiada, por mais megapixels que houvessem. Depois, começou a lenta descida. Descer a estradita lunar que nos leva do encantador asfalto até à simpática areia da praia, digo lunar porque como podem imaginar esta estradita é formada por crateras. Desce-la não foi tarefa fácil, mas lá chegamos inteiros.
O Sol lá se decidiu a fazer-nos companhia, e por falar em companhia eu estava muito bem servido, o colega Mário, a Dulce e respectivas, encantadoras, divertidas, e doidas cadelas, a Kim e a Bauer.
Diga-se de passagem, que o inicio da semana não foi fácil para mim... ossos de oficio, mas agora estava a terminar naquele pequeno paraíso.
A Kim foi adoptada pela Dulce, e a Bauer veio de Portugal, portanto uma Angolana e uma Portuguesa. Foi interessante constatar que os bichos não tem preconceitos entre eles... digo entre eles, porque... já vão entender.
Durante a viagem até à praia, reparei no seguinte, Sempre que passávamos por pessoas de pele escura, a cadela ficava com os pelos do lombo eriçados e ladrava... muito irritada, ou diria antes, revoltada, mesmo depois na praia, teve a mesma atitude.
Curioso... Pensando um pouco, a cadela certamente que sofreu maus tratos por alguns senhores de pele mais escura, depois viu-se tratada no conforto e carinho que a Dulce lhe disponibilizou, que tem a pele mais clara, et voilá... o quadro ficou pintado.
Voltando à praia, é uma praia do meu número, isto é, serve-me na perfeição.
Areia limpa, algumas rochas, água límpida, pouco povoada, e quando se está sentado na areia tem-se a linda vista das águas verde esmeralda mesmo ali à frente, quando se está de molho, voltado para praia, tem-se a linda vista de serra verdejante, é de facto um local maravilhoso. Insisto, não sei o nome da praia, vou chamar-lhe formosa. Praia formosa.
A Kim e Bauer estavam também encantadas, e espalhavam a sua alegria em todos os grãos de areia. Estavam irrequietas, davam umas patadas na água, voltavam a terra, faziam-se de croquetes enrolando-se na areia, e reparem que até chegaram a atacar um humano que deu à costa (eu).
Confesso as minhas dificuldades em sair da água, pois esta estava com a quantidade de graus centigrados certa, e boa visibilidade. Alem da temperatura havia outra diferença que deveria ter sentido. Seria o facto destas águas serem mais salgadas. Bom, pelo sabor e ardor nos olhos não me pareceu. Mais salgadas porque? Porque há mais calor, logo mais evaporação, e menos chuva, logo menos adição de água doce.
Quanto às amigas quadrúpedes... essas corriam, corriam, corriam, nadavam, nadavam, nadavam e tinham sempre a gentileza de virem-se sacudir mesmo ao nosso lado, quando repousávamos nas toalhas... imaginem com tanto espaço para se sacudirem, mas não. Ali ao nosso lado era melhor.
As tantas a Bauer, já com pouco por inventar, começou a escavar de forma energética, ali junto dos meus pés, de quando em vez, parava... farejava como se tivesse detectado qualquer coisa.
Pode ser um cadáver... desde que tenha diamantes nos bolsos, o cenário não será tão mau, pensei eu.
Depois de umas horas, chega um casal amigo da Dulce, casal simpático e interessante... depois de umas boas conversas e apetitosas sandes e chamussas, o por do sol, o pano a cair sobre o palco, e que belo cenário deixamos para trás.
Seguiam-se algumas horas de viagem até Luanda, as cadelas dormiam, hesitamos algumas vezes no caminho de regresso, já que era a 1ª vez que o fazíamos em sentido oposto e os pontos de referencia à noite, mal se viam... mas felizmente para nós, escolhemos sempre bem.
No final, acabamos por jantar na casa da Dulce, um delicioso peru no forno com batatas assadas, acompanhados por bom vinho.
Obrigado Dulce, Obrigado Mário, Obrigado Kim e Obrigado Bauer, pela 6ª feira escape, que foi bem passada, acho que posso dizer... eu estava a precisar!

23 maio, 2007

Confiança


O que é bonito neste mundo, e anima,

É ver que na vindima

De cada sonho

Fica a cepa a sonhar outra aventura...

E que a doçura

Que se não prova

Se transfigura

Numa doçura

Muito mais pura

E muito mais nova...



Miguel Torga

27 abril, 2007

O Camba Rato

Estou há 1 semana em Luanda, em casa que pertence à empresa. Uma pequena moradia que fica num largo simpático, e como não podia deixar de ser, temos a companhia de um simpático roedor. É o Zeca.
Na passada 3ª feira, fizemos-lhe uma pequena perseguição, mas nada de especial... era só para lhe tirar umas fotos. Depois fomos jantar e nunca mais o vimos. Acho que o Zeca ficou amuado por não ter sido convidado para jantar.

Fiquei cheio de remorsos e como medida atenuadora, deixei-lhe um bilhetinho.

26 abril, 2007

José Afonso, o Farol


Há 6 meses, no post A chegada a Luanda, disse que "... estou em Africa, continente de outras maravilhas, outras barbaridades, mas sempre com o seu encanto muito próprio que em outros episódios tentarei explicar."

Aproveito a data de ontem, 25 de Abril, para usar as palavras de Zeca Afonso para descrever melhor o que sinto.

José, Faço das tuas as minhas palavras também, com licença...

"Sabia que tudo ia ser muito mais violento que tudo quanto tinha experimentado até aqui. Custou-me muitíssimo ir para África, mas hoje não estou nada arrependido".
"Fiquei terrivelmente ligado àquela realidade física que é a África, aquilo tem de facto qualquer coisa de estranho, uma força muito grande que nos seduz".


José Afonso, 1967

07 abril, 2007

O Parque e a Estátua



Mais uma visita ao parque do granja, cuja beleza não me cansa.
Bom local para ficarmos deitados na relva a ler um bom livro, dar uns mergulhos na humilde piscina, rir com os amigos, brincar com as crianças, etc...

No caminho de regresso à cidade acontece o indesejável. Furo num dos pneus. Aproveito para tirar umas fotos à estátua mais bonita e simbólica que conheço do Agostinho Neto.
A estátua mostra um Agostinho Neto sentado no chão, e debroçado sobre o seu caderno vai escrevendo as suas notas ou poemas, carregando às costas uma mochila e a espingarda AK.
Fica a questão... Qual a mais eficaz e justa das armas? A AK ou a caneta?








05 abril, 2007

um cheirinho... Que saudades da Vô Zita


Ao tentar adormecer ao som dos tiros ela meditava, e pensava que tinha passado mais um dia. Mais um dia com o constrangimento de regressar a casa e nunca saber se iria encontrar todos vivos e de saúde, e saber que cada encontro, cada olhar, cada beijo poderia ser o ultimo.
Ter que deitar-se com a angustia da guerra continuar pelo amanhecer, e a esperança da guerra acabar, tornava a sua cama cada vez mais pequena.
Por vezes a avô Zita aproximava-se lentamente, sempre denunciada pela sua enorme sombra na parede, tremida apenas pelas inconstâncias da chama da vela, e por aquele som característico de arrastar chinelos, sentava-se à beira do colchão, com as suas mãos duras e rugosas acariciava-lhe a cabeça, e como despedida dava-lhe um beijo na testa dizendo, Dorme bem minha filha. Ao fazer isto, a avô levava consigo a angustia, e a cama ficava mais confortável, mais espaçosa.
De seguida, Belita fechava os olhos e voltava a ouvir os toques dos chinelos, agora a afastarem-se, como uma musica e dança que estão terminando, o som baixando de volume a medida que dançarinos saem de palco. Ouvia agora o bater da porta. Vozita era a chefe da família, e a única que recusava-se peremptoriamente a dormir na casa dos vizinhos, só por oferecer mais segurança.
Dizia, Se tiver que morrer nesta guerra, vai ser na minha casa, então, todas as noites ela regressava sozinha ao seu palácio, sentava o seu enorme corpo no velho cadeirão, acendia o seu cigarro naquele silêncio e escuridão, onde só se via a luz vermelha do cigarro entre os dedos mulatos e grossos com unhas pintadas num vermelho vivo, como o seu sangue.
As lágrimas vertiam timidamente pelos olhos de Belita, cada vez que a Vozita saía sozinha de noite, pensava que podia ser a ultima vez que a tinha visto, mas Belita encorajava-se sempre quando pensava muito na avô, era como se fosse um imponente imbundeiro bem enraizado nesta terra, que teimava em ficar, quando todos fugiam. Teimava em viver a sua vida calmamente dentro daquela incompressível normalidade.
Lembrava-se agora do ritual de refugiarem-se nos bunkers improvisados em alguns quintais dos vizinhos, de passar pela avô naquele largo junto à casa, e vê-la sozinha, curvada com aquele rabo enorme para cima, e cabeça coberta com o lenço para baixo, arrancando vigorosamente à mão o impertinente capim, cuidando assim das suas culturas de abóbora, enquanto aqueles impertinentes camaradas do MPLA, passavam lá em cima nos seus mig´s, bombardeando indiscriminadamente a cidade, semeando a dor e destruição... diferentes culturas, pensava Belita, oxalá a avô arrancasse também desta terra aqueles impertinentes camaradas, aqueles e os da UNITA. Agora, depois de encorajada, mas ainda com resíduos das lágrimas, Belita sorria, estava a lembrar-se dos soldados da UNITA prenderem a Vozita.
Ò mãezinha já viu o que está a fazer? Tem a bandeira com a cabeça do mais velho (Savimbi) voltada para baixo!?!? Vamos ter que a prender.
Num bairro controlado pela UNITA, era a única família que preferia o MPLA, talvez também por serem todas mulatas e terem sofrido algumas perseguições da UNITA por não serem negras, valeu-lhes sempre terem uma familiar casada com um importante membro da UNITA, que fez com que tivessem escapado a muitas perseguições, e neste caso, valeu a libertação da Vozita.
A Vozita jurou ate aos seus últimos dias, que estava distraída quando içou a bandeira, mas dizia-o sempre rindo às gargalhadas e abanando a cabeça.

29 março, 2007

O Regresso

Regresso

Estou só,
entre o fim e o inicio,
sinto agora as mãos na face
Frias e secas,
Que lentamente vão abrindo como portões antigos,
permitindo que a claridade entre e ocupe o seu lugar,
neste reino abandonado.

28 março, 2007

Canis Lupos Signatos

Vontades de Lobo

É noite
Lá fora, os cães ladram
Cá dentro, vou sonhando
uivar nessas matas
debaixo da luz lunar
e matar a sede no jardim dos ventos

23 março, 2007

Maus inquilinos



Salmonella Typhi é o meu recente inquilino bacilo, que só me tem dado dores de cabeça, e também como já ando cansado, recorri à Cripofloxacina para proceder ao processo de acção de despejo deste caloteiro.


Para grandes males, grandes remédios.

15 março, 2007

Eleitores Fantasma

Em leitura de um jornal semanário, fiquei surpreendido com a noticia:
Há 800 mil portugueses a mais registados como eleitores.
“um em cada 11 eleitores não existe” segundo várias fontes oficiais e de um estudo de dois estudantes do mestrado de Politica comparada do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Consequências:

Bom... no caso da Madeira, registam-se que 20% dos inscritos não vivem no arquipélago ou talvez tenham morrido, ninguém sabe ao certo, este facto permitiu a essa região autónoma eleger 6 deputados em vez de 5.

Como já se sabe, os salários dos vereadores e presidentes de juntas de freguesias é depende do numero de eleitores, portanto esta situação é favorável a muitas autarquias que não actualizam os seus cadernos eleitorais.

Afinal a abstenção não é o monstro que políticos e analistas pintam, quando falarem de abstenção podemos sempre tirar cerca de 9% aos números apresentados, e então estaremos mais próximos da realidade.

E no caso do referendo do aborto, os 54% de abstenção, afinal na realidade correspondem a menos de 50%, o que tornaria a lei vinculativa e teria ficado aprovada directamente nas urnas, se o recenseamento estivesse corrigido.

11 março, 2007

Face Negra


Conheci o Peter no cyber café do Huambo. Para terem uma pequena ideia, estive das 9h00 até às 16h00 no cyber para conseguir enviar 4 emails. Depois mais uma queda da ligação e um fuck off desesperante do Peter, decidi meter conversa com ele. Começamos precisamente por falar sobre a ligação da Internet. O desespero era o mesmo, tal como eu, o Peter queria enviar os emails com os relatórios mensais para o chefe.
O Peter é rapaz para os seus 50 anos, com aspecto um pouco british, e trabalha numa ONG aqui no Huambo, e estava a queixar-se que os chefes dele não entendem que os atrasos de envio de alguns documentos por net. Conversa puxa conversa, fomos parar ao passado do Peter. Ele já conhece Angola desde há 20 anos.
Com um olhar distante e de testa franzida, contou-me que fora mercenário sul africano que combateu ao lado da UNITA, contra as forças do MPLA. Embora ele me tenha contado algumas aventuras durante a sua estada de várias semanas nas matas do norte, que demonstram os limites do ser humano, reparei que começara a desviar o olhar e a ficar um pouco perturbado, e então decidi que devia parar com as perguntas sobre esse passado. E que a certa altura, desertou porque estava farto dos crimes, (tal como lhes chamou) refugiando-se no Zimbabué durante uns anos, voltando depois ao seu país, Africa do Sul. Mas ficou desiludido com as politicas racistas do seu país, diz que não se sente um sul africano, não se revê no seu país, e voltou agora a Angola, talvez com algum sentimento de divida, digo eu.
Fiquei encantado com a mudança... de mercenário a técnico de uma ONG estando a colaborar na produção de próteses que tem como destino muita gente que perderam membros por minas provavelmente fornecidas por ele, ou por seus colegas. Foi por esse encantamento que decidi partilhar convosco esta curta história, e lembrar que... toda a alma tem uma face negra.

04 março, 2007

Fotos no Huambo

Cemitério dos comboios
Camimhos Ferro de Benguela


Vestígios de urbanismo e arquitecturas - anos 60